segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Foto: Concerto OCAM com Fernández e Duo Siqueira Lima 30/10/11





Foto: Concerto Quarteto FLB, Ensemble FLB e Trio Gismonti 30/10/11






Foto: Encontros e Lançamentos 29/10/2011





Foto: Ensaio Aberto na Unicsul




Foto: Palestra Marcia Taborda



Foto: Palestra Ricardo Dias



Foto: Recital 27/10/2011



Foto: Palestra Celso Delneri




terça-feira, 1 de novembro de 2011

Programa Metrópolis mostra reportagem com Leo Brouwer

A Poética de Sérgio Abreu: uma tentativa de entendimento de sua contribuição musical, por Edelton Gloeden e Luciano Morais


Introdução
            Este texto, por ocasião da homenagem realizada a Sérgio Abreu no III Festival Leo Brouwer, dispensa os comentários biográficos que estão amplamente divulgados, bem como as apresentações da carreira e do legado das gravações que ainda influenciam gerações de violonistas e músicos no Brasil. Pretendemos abordar seu legado como fruto de uma pesquisa acadêmica; como tal, o impacto de sua obra precisa ser discutido no contexto do sentido da obra de arte, de sua constituição profunda, de suas implicações históricas e, por que não dizer, ontológicas. Isso equivale a dizer, sem exageros de homenagem, que a contribuição de Sérgio Abreu como violonista abalou os fundamentos da compreensão ordinária que temos do violão, da sua história, da abordagem da tradição musical ligada a esse instrumento e da arte interpretativa em seu sentido mais abrangente. A forma como nos aproximamos desse verdadeiro divisor de águas na história do violão é através da indicação formal da hermenêutica, corrente da filosofia que acreditamos ter muito a contribuir para a compreensão da herança histórica e da poética musical. As gravações de Sérgio Abreu são o norte deste texto, mesmo que por vezes a contribuição da filosofia hermenêutica de Gadamer e Heidegger pareçam tomar a cena. A justificativa desse apelo à filosofia vem de dois pontos: primeiro, da idéia de que repensar qualquer atividade a partir de seus fundamentos já é sempre filosofia; segundo, que diante de acontecimentos que abalam profundamente nossa compreensão desses fundamentos, o senso comum não parece ser suficientemente explicativo. Sérgio Abreu é, fora de qualquer dúvida, um desses acontecimentos.


Poética e técnica

            Como já temos discutido em nossos trabalhos baseados no debate atual da musicologia, a poética não é um mero enredo de imagens (ou seja, visualizações) extra-musicais com a intenção de dar o que imaginar (ou seja, conjurar visões imaginadas) ao intérprete enquanto "executa" (ou ao ouvinte enquanto "escuta") a música; a poética, no contexto de nossa discussão, não é um passatempo da mente que aciona estados de disposição, dirigindo os crescendos, decrescendos, rubatos e respirações do intérprete, guiando a atividade perceptiva do ouvinte e as seleções que a escuta pode fazer. Não é um conjunto de impressões gerativas da obra a serem transmitidas com maior ou menor sucesso ao ouvinte. Também não é uma transposição do estado de devaneio do tipo evocado pela literatura e pela poesia romântica, que de devaneio, especialmente a poesia, não tem nada.
            A poética é, antes de tudo, uma idéia que pertencia ao mundo do pensamento na Filosofia da antiga Grécia. A ela Aristóteles se lançava rumo à obra do discurso filosófico quando se referia a um momento muito peculiar da criação inteligente. Esse momento nunca deixou de chamar a atenção da filosofia, mas na fase nascente do pensamento sistematizado da cultura ocidental essa atenção ainda não estava sob o domínio da especialização filosófica chamada Estética. Falamos hoje do tempo de pensadores-poetas e poetas-filósofos. Como se pode pensar então a poética no caminho de um pensamento voltado para o material presente, seja ele a palavra, a imagem, a narrativa, o som, o conceito ou o conceito-som, agora que o desenvolvimento das disciplinas nos força quase que a um afastamento, dividindo-as em "práticas" e "teóricas"? Talvez esse afastamento seja o primeiro sinal de uma aproximação possível, e a criação profunda, tanto em um campo quanto em outro, nos convida ao concerto[1] da filosofia com a arte.
            Ao conjunto de concepções de que um artesão/artista lança mão no momento de formar seu construto artístico, isto é, de produzir sua obra, a esse esforço é que era dado o nome de poiesis, a produção, o produzir consciente de sua tekné. A poética lida diretamente com os aspectos artesanais da criação artística, os meandros particulares da medida de sua construção advinda de uma convivência que determina essencialmente a vida do artista. A poética demarca o campo da lida com a tekné, que é o modo de ver o material com que se trabalha e as possibilidades de pensar sobre esse material com visando à produção de uma obra de arte que deve ser autônoma e independente da vida de seu autor. Estamos aqui muito longe de uma sugestão imagética alheia ao material específico de que cada arte é feita, como se aprendeu depois a ouvir as traduções da palavra "poiésis": um claro exemplo de traição do sentido pleno de uma expressão por meio da tradução.
           
Sérgio Abreu: abordagem originária da idéia de uma técnica violonística

            Ainda ressoa em nossos ouvidos esse sentido que se tornou a própria necessidade da técnica para a arte, ainda salta aos nossos olhos a firmeza e a consistência técnica de nossos melhores músicos, a regularidade e a direcionalidade firme das passagens escalares da famosa gravação de Sérgio Abreu da Sonata de Paganini. Ressoa na palavra agora recém-descoberta tekné a sequência igualmente exuberante de terças do estudo op. 6 n. 6 de Sor, que o padrão técnico estabelecido por Sérgio e também por Eduardo Abreu parece ter retirado do repertório dos violonistas "normais". Diante dessas gravações, qualquer outra abordagem parece apenas expor as fragilidades "técnicas" dos outros violonistas. O registro de Eduardo Abreu é anterior, algo mais lento do que a gravação de seu irmão mais velho. Mas é igualmente clara a direcionalidade melódica das frases, proporcionada por um controle sutilíssimo das gradações de dinâmica que mantêm a abordagem interpretativa dentro dos limites de uma concepção voltada para o estilo clássico. Em quaisquer das duas gravações está atestada uma "técnica" rara que nos parece nova mesmo diante das referencias atuais que as utilizaram como base. Mas é o intangível elo dessa técnica com a concepção musical correspondente que pede que se retorne ao passado conceitual grego se quisermos entender a contribuição musical dos Irmãos Abreu. Até porque a indicação formal desse passado conceitual é a orientação no sentido da obra - nesse caso, da obra de arte interpretativa, é um "permanecer ao lado da obra" para aprendermos a pensar mais profundamente a interpretação musical. É isso o que define uma abordagem originária de um conceito, uma expressão fundamental para Heidegger na sua análise da obra de arte: aquilo que foi pensado primeiro, que sempre impulsiona para novas percepções, que está na origem e por isso origina novos acontecimentos; aquilo que nos reúne em torno de uma referência para a qual podemos voltar, sempre convictos de retirar dali algo de atual.
            Essas duas gravações diferentemente orientadas e igualmente interessantes do mesmo estudo de Sor ensinam algo de fundamental sobre a performance, que é um campo em desenvolvimento da atividade musical acadêmica. E, nesse contexto, propomos que seja pensada a expressão abordagem originária da obra de arte. A performance, subárea de pesquisa surgida da reflexão das Práticas Interpretativas, não é apenas uma reunião de habilidades no campo da técnica, do controle da dinâmica, do planejamento do fraseado e do conhecimento do estilo, mas, sim, uma investigação, através da abordagem das obras, de como esses diferentes domínios configuram diferentes poéticas e de como essas poéticas dialogam com a  herança histórica, redefinindo-a. Nesse contexto, há muito mais do que o que entendemos por uma técnica superior (correção de meios para se chegar a um fim musical). No exemplo citado, podemos ouvir não só momentos diferentes de realização da mesma poética, da mesma concepção musical, mas também presenciarmos o modo como essa concepção particular reúne a prática performática anterior. O impacto do registro dessa performance reside exatamente em mostrar um diálogo pleno com sua tradição interpretativa.
            Essas gravações têm a eloquência retórica que a antiga filosofia pré-moderna evocava para falar da experiência fundamental do pensamento. Elas também nos remetem a uma experiência fundamental da escuta, onde o marco zero de uma escuta reduzida leva à plenitude de uma riqueza de detalhes controlados advindos da tradição segoviana. Nesse terreno, no caminho "onde o som adquire sua ressonância", para citarmos Heidegger, cada nota tem seu valor na construção de uma concepção particular do que seja a música de Sor ou Paganini, e essa construção no seu todo desvela um caminho de comprometimento musical que entende a diferença na igualdade, percebe a antiga oposição entre o uno e o múltiplo, o geral e o particular, o eterno e o finito. Trata-se da manipulação de uma variedade sonora controlada e estável, de uma homogeneidade sonora inquieta e pulsante a nos explicar e expor a estrutura, o fraseado, a elaboração motívica e todos os demais elementos presentes em uma escuta analítica. É necessária uma nova reflexão sobre arte para entendermos a contribuição musical de Sérgio Abreu. A isso nos dedicamos ouvindo a interpretação fundamental de Gadamer, ao dizer do que a arte nos diz quando nos move essencialmente: "Tu precisas mudar a tua vida". Para abordar a contribuição de Sérgio Abreu, o próprio conceito de técnica precisa ser revisado.

Atualidade da tekné no contexto da antiga poiésis;

            A tekné era entendida como um modo de ver o material no contexto da poética, como a episteme era usada para se referir a um modo de ver o objeto no contexto da ciência. Trata-se, nos dois casos, das condições de possibilidade de que o material ou o objeto existam, no modo próprio de ser desvelado pela arte ou pela ciência. Aqui, a realidade da natureza; ali, a matéria-prima de um construto artístico. Torna-se então essencial o efeito fundamental buscado na arte, seja a tragédia, a comédia, a música ou a narrativa épica, braços constituintes da mesma obra da antiguidade Grega que a ópera italiana seiscentista procurou reviver. Esse efeito era a catarse, o reencontro consigo mesmo por parte da audiência cúmplice dos processos da narrativa artística. O enriquecimento da existência advindo das condições de consciência racional e emocional sustentados pela atividade artística se tornou tema das orientações de Platão para a vida em sociedade. Mas com muito mais propriedade a geração de artistas abalados pelo fenômeno artístico procuram, no exercício desta ou daquela arte exemplar, uma continuidade do fenômeno fundamental evocado pela grandeza da realização de pensamento que há nesse campo. Assim prossegue, paralela ao triunfo da ciência moderna, a atuação humana no território dos perceptos, que é, para Deleuze, o terreno da percepção: distinta, porém irmã da conceitualização. Aqui, como nas gravações de nosso homenageado que nos chamam para estar sempre uma vez mais e de maneira nova junto da obra de arte interpretativa, ressoa ainda o chamado de mudança da arte que Gadamer atualiza. Tocar um instrumento e visar ao necessário desenvolvimento da técnica passa a ser, depois de uma escuta apurada dos irmãos Abreu, uma questão profundamente musical. Técnica e música não se separam, mas isso é menos evidente do que dizemos e fazemos no cotidiano de nossas vivências musicais. O triunfo da instituição dos concursos de música como pensamento dominante sobre a formação musical sinaliza isso.
            Pesquisar a estrutura da concepção interpretativa de Sérgio Abreu é pesquisar a sua herança histórica e, ao mesmo tempo, reconsiderar a nossa própria. Isso confirma o postulado fundamental da hermenêutica contemporânea, tal como foi especialmente desenvolvida por Heidegger e Gadamer: compreender o interpretado é compreender toda a tradição na qual esse interpretado se encontra, ao mesmo tempo em que se compreende a tradição na qual nós mesmos, como interpretantes, estamos incluídos e incluímos nessa tradição o interpretado. A esse contexto é que chamamos "herança histórica". Nunca um aprendizado subserviente de um modo particular de ver a música, de tocar uma peça ou de abordar a sonoridade. A herança histórica é sempre crítica e ao mesmo tempo devedora da tradição; e é tanto mais bem recebida quanto mais bem compreendida no sentido de superá-la e aceitá-la. Esse movimento duplo de compreensão não só define a hermenêutica, mas a constitui. Estamos todos implicados no círculo hermenêutico antes do contato com o texto a ser interpretado, e esse círculo determina a própria seleção desse texto, mantendo em torno dele o movimento da compreensão. Isso vale para a partitura como texto, mas também para a concepção poética e técnica. Sérgio Abreu tem em sua herança histórica a contribuição de Adolfina Távora, que, tendo falecido neste ano, parece estar cada vez mais presente por meio das homenagens de violonistas, jornalistas, alunos e até mesmo de pianistas, como Arnaldo Cohen, que também receberam a influência de sua instigante poiésis.
            Que análise descritiva poderia se referir melhor ou mais claramente ao caminho dessa herança histórica expressa em uma concepção musical singular orientada por uma das maiores alunas de Segovia, do que essa definição de hermenêutica como interpretação, como compreensão que mantém em vista a tradição que lhe dá sentido? Como entender melhor o círculo hermenêutico da interpretação do que acompanhando por meio das gravações, que são o que nos resta de vestígios históricos, a forma com que Adolfina fez crescer a inteligência musical dos irmãos Abreu na hoje quase extinta relação mestre-discípulo? Essa relação determinou um contato mais amplo possível com as mais diversas artes e músicas, especialmente as produzidas por outros instrumentos, ou seja, por outras tradições interpretativas - aí está a característica eminentemente crítica e compreensiva dessa já rica herança histórica. Alguma investigação documental poderia revelar melhor do que essa definição de hermenêutica o rastro da tradição pianística presente nos Irmãos Abreu oferecida a eles por Dona Monina, recebida por sua vez das mãos do grande pianista catalão, Ricardo Viñes? Que manifesto poético deixaria mais clara a amplitude dessa experiência musical do que a audição orientada das cada vez mais numerosas gravações que a generosidade de Sérgio Abreu disponibiliza para nosso estudo, na ausência de uma atividade ostensiva como professor? Qual seria uma recusa mais eloquente da industrialização da produção musical, equivalente da mecanização do pensamento poético, do que o abandono das salas de concerto realizado pelos irmãos pensadores-poetas, ao perderem o espaço da música feita em casa cultivada por seus pais, seu avô e seus amigos violonistas? A música era um alimento do dia a dia para sua mãe, Maria de Lourdes Rebello Abreu, pianista e violonista amadora; para o avô materno; Antonio Rebello, célebre professor no Rio de Janeiro; para o pai Osmar Abreu, aluno de seu sogro; e para o dileto discípulo e assistente de Rebello, o violonista Jodacil Damasceno, que fez as vezes de "parente musical" dos jovens promissores. Como confrontar essa vivência com as turnês exigentes de concertistas de avião a jato, aos quais muito cedo (antes dos 20 anos) foi imposta uma rotina de produção de discos e repertório fora do tempo próprio da arte de artesanato que eles aprenderam a fazer? Que declaração mais exata do valor característico dessa poética do que a dedicação de Sérgio Abreu à lutheria, como se silenciando sua voz ele agora fornecesse o instrumento flexível e adaptável à medida de cada compreensão poética? Nesse sentido, mesmo sua atividade como luthier reflete sua poética interpretativa. Para ele, o melhor violão é o que soa diferente na mão de cada intérprete, é o que possibilita uma boa interação entre a concepção musical e sua realização. Como resultado, ele projeta seus instrumentos para possibilitar uma variedade de timbres, dinâmica e projeção cujo resultado frequentemente é confundido com o de um instrumento difícil de controlar. É possível ouvirmos violonistas tão diferentes, como Paulo Pedrassoli, Eduardo Meirinhos ou Edelton Gloeden, o Brasil Guitar Duo ou o duo Siqueira-Lima, partirem dessa mesma matéria-prima que reflete a concepção poética de Sérgio Abreu. O máximo de recursos interpretativos possibilita uma gama mais ampla de escolhas, mas obriga a fazer efetivamente uma escolha e trabalhar para defini-la junto a tantas outras possíveis. Um bom instrumento, nessa concepção poética, é o que se dá ao trabalho, ou seja, o que dá trabalho! Como foi dito claramente por Heidegger sobre a condição da decisão, a escolha obtida numa gama limitada de opções não é efetivamente nenhuma escolha.
            Nos textos sobre a hermenêutica da obra de arte de Gadamer, encontramos a palavra para o impacto que essa contribuição musical e histórica (como é o caso de qualquer grande poética que confronte algum nível de compreensão da própria tradição) produz ainda hoje sobre nós, que nos move em torno das obras musicais e da tradição violonística. Uma análise descritiva do contexto dessa tradição revela as estruturas intencionais, e é no descortinar da intencionalidade que diferenciamos "intenção" e "descrição". Embora essas palavras se refiram, ambas, a etapas da compreensão estrutural do fenômeno percebido pela consciência intencionante, elas não esgotam o fenômeno da intencionalidade, construtiva e perceptiva ao mesmo tempo, que nem sempre é dirigida por nossas intenções manifestas. Esse é o campo trabalhado pela fenomenologia. Qual é a contribuição dessa corrente filosófica para as ciências humanas, nas quais se inclui as diferentes abordagens acadêmicas da obra de arte? Confirmar a cumplicidade entre sujeito e objeto, revelando as ligações entre eles que constituem um e outro. Assim, aproximar-se da tradição musical que formou Sérgio Abreu pela ótica do caminho de formação das Humanidades (História, Filosofia, Hermenêutica, Fenomenologia, Musicologia, etc.) é construir o relato de sua formatividade na qual se revela uma estrutura de intenções, entendimentos, seleções e conhecimentos que, assim abertos pelo discurso, nos dão novas perspectivas como artistas, pensadores, intérpretes ou professores. Esse caminho deve ser construído por cada um no contexto de sua própria formação e tradição musical - e é aí que reside a contribuição indispensável de Sérgio Abreu para o pensamento poético das práticas interpretativas. Explica também a razão pela qual sempre temos algo a compreender novamente ao passar nosso tempo junto a esses registros históricos. Como nas obras de qualquer grande artista, o tempo não desgasta as possibilidades de enriquecimento dessas gravações; ao contrário, quanto mais conscientes de nossa tradição musical, mais rico é o diálogo que podemos estabelecer com elas. Charles Chaplin foi elegantemente contestado pelos cineastas quando afirmou que o seu maior inimigo era o tempo, entendendo sua poética visual como algo restrito aos meios técnicos sobre os quais ela se realizou. Pelos mesmos motivos, afirmamos que as gravações de Sérgio e Eduardo Abreu têm mais a nos ensinar hoje, na medida em que a pesquisa em performance se depura e se desenvolve.

Estar junto à obra

            Não faltam, na contemporaneidade, referencias musicais disponíveis. Entretanto, essa nova disponibilidade mediada pelas ferramentas de conexão interativa carece de um componente essencial do próprio ser-disponível, que é a existência ao lado da obra, essencial para que a contribuição da arte se realize profundamente. Se por um lado a filosofia hermenêutica nos esclarece algo da relação essencial entre obra, público, artista e intérprete, por outro as contribuições de Sérgio Abreu tornam palpável o argumento de Gadamer, segundo o qual a arte é um convite à transformação de nossa vida. O violão e a responsabilidade perante nossa herança histórica não podem ficar intocados após o contato com essa poética que redefine os fundamentos da arte interpretativa. E a hermenêutica propõe o passo fundamental para reconhecermos a necessidade de nos estabelecer ao lado dessa monumental tarefa de compreensão musical, que hoje trazemos para o olhar o mais amplo possível, mantendo presente o diálogo com o violonista Sérgio Abreu, essa bela releitura da tradição interpretativa ligada ao violão. Em todos os ramos da pesquisa, seja lá de que maneira for, desde o estudo do instrumento, a investigação de seus fundamentos, métodos de ensino, abordagens analíticas até a programação de carreiras e repertórios, abordagens de técnica, enfim, todas as possibilidades de configuração de nossas vivências musicais, o diálogo com Sérgio Abreu tem muito a enriquecer. Continuar essa tradição dentro da indicação formal de Gadamer e da hermenêutica em geral é compreender esse grande artista ao mesmo tempo em que compreendemos nossa própria tradição, que se fundamenta nas referências que ele mesmo determinou. A continuidade no diálogo, para finalizar com uma expressão gadameriana, nos parece ser uma autêntica conclusão. Uma resposta adequada diante de sua contribuição.


BIBLIOGRAFIA

HEIDEGGER, Martin: A origem da obra de arte. Tradução: Maria da Conceição Costa. Lisboa, Edições 70, 2005. (primeira edição: 1977. Publicado pelo autor em 1950).

NUNES, Benedito. Hermenêutica e Poesia. O pensamento poético. Belo Horizonte, Editora UFMG, 1999.
GADAMER, Hans-Georg: Hermenêutica da obra de arte. São Paulo, Martins Fontes, 2010.



[1]A palavra "concerto" vem do latim "concerere", que significa "reunir". Pretendemos com isso, enfatizar a idéia de reunião entre a reflexão filosófica e musical, numa tentativa de superar o antagonismo entre prática e teoria.

Foto: Recital (26/10/2011)



A Estrela (para Sergio Abreu), por Marcelo Kayath


Na Antiguidade, os navegadores se orientavam pelas estrelas para chegar ao seu destino. As estrelas representavam a direção, o auxílio imprescindível para que a jornada tivesse sucesso. Existem pessoas que são como estrelas. Elas nos orientam, mostram-nos a direção correta, auxiliam-nos na nossa jornada, iluminam nosso caminho pela vida.

Eu tive a grande sorte e o privilégio de contar com a ajuda de uma grande estrela. Ela me guiou em todos os momentos importantes da minha vida musical, mostrando-me sempre o caminho da luz. Conheci o Sergio Abreu aos 15 anos de idade, levado pelo meu professor, Jodacil Damaceno. O pretexto era ter a opinião dele sobre um violão espanhol que eu acabara de adquirir, mas, na verdade, o que eu queria mesmo era conhecer de perto um dos maiores gênios que o violão brasileiro já havia produzido. Sergio abriu a caixa do violão e pôs-se a afiná-lo. Imediatamente saquei um diapasão do bolso e bobamente lhe ofereci “ajuda”. “Não precisa, não”, foi a resposta curta. Para meu espanto adolescente, Sergio tinha o lá fundamental na cabeça. Ainda incrédulo, fui testar a afinação com o diapasão e, para a minha surpresa, constatei que estava tudo certo.  Ele começou a experimentar o violão, testando os limites do instrumento, corda por corda, improvisando acordes e temas. À medida que ele foi tocando, fui me dando conta de que estava diante de um fenômeno musical. Aproveitei a ocasião para tocar algumas passagens dos Estudos de Villa-Lobos com os quais estava tendo dificuldade. Ali, Sergio rapidamente me deu pequenas dicas que resolveram os problemas.

Naquele dia percebi que eu estava muito distante do meu objetivo de ser um violonista de primeira linha. Na minha frente, desafiando-me, eu vislumbrava o monte Everest. No entanto, ao longo dos anos seguintes, percebi também que havia uma estrela-guia no céu, iluminando o meu caminho morro acima. Foi o início de uma amizade que já dura mais de 30 anos.

Ao longo de todo esse tempo, aprendi muito com o Sergio. Aprendi que não só na música, mas também na vida, devemos cultivar o perfeccionismo, perseverar na busca pela excelência absoluta, tentar fazer tudo sempre benfeito não só com inteligência, mas também com simplicidade e humildade. Em termos artísticos, Sergio me ensinou a ter um compromisso total com a arte, com a música e com o violão - nessa ordem. Também fui testemunha de inúmeros episódios em que ele demonstrou generosidade e grandeza com a família, amigos, conhecidos e até mesmo com desconhecidos.  Sergio certamente teria tido grande destaque em qualquer campo em que tivesse se dedicado profissionalmente. Além do ser o músico excepcional que nos proporcionou enormes alegrias ao longo de tantos anos, ele acabou se interessando em ser um dos melhores luthiers da história do violão. Quem o acompanha de perto sabe que nos últimos anos os violões Abreu têm apresentado uma evolução assustadora. Minha firme convicção é de que os anos de ouro da produção do Sergio estão apenas começando.   

Sei que Sergio Abreu foi a estrela-guia de muitas outras pessoas. No meu caso, ele provocou e continua provocando um impacto enorme na minha vida e no meu desenvolvimento musical. Jamais teria conseguido fazer o que fiz sem a ajuda e a orientação dele. Tenho certeza de que falo por muitos outros quando digo que não tenho palavras para expressar a minha gratidão por tudo que ele fez por mim ao longo de tantos anos.

Sergio, você é a nossa estrela-guia. A sua arte mudou a nossa vida. Em nome de todos aqueles que você ajudou e continua a ajudar, muito obrigado do fundo do nosso coração. 

Foto: Recital (25/10/11)




Toru Takemitsu e Leo Brouwer, Jardins Pentagonais e Paisagens


Em dezembro de 2009 foi realizada, no Taipei National Concert Hall, a primeira audição de uma das mais significativas obras concertantes da literatura do violão: o Concerto da Requiem, in Memoriam Toru Takemitsu II, composto em 2005 pelo maestro cubano Leo Brouwer e dedicado ao extraordinário violonista japonês, Shin-ichi Fukuda, que foi o solista dessa estreia.

Toru Takemitsu (1930 – 1996) e Leo Brouwer (1939) foram grandes amigos. Apesar das diferenças entre as culturas cubana e japonesa, podemos identificar muitos pontos comuns nas obras desses dois compositores: a liberdade e o respeito à diversidade, o convívio harmonioso entre tradição e experimentação, o equilíbrio de arquiteturas sonoras, a paradoxal relação entre a natureza e as intervenções humanas e o inconformismo diante da injustiça. Outra afinidade entre eles é o trabalho que desenvolveram no universo cinematográfico: Takemitsu, no cinema de Kurozawa; Brouwer, no novo cinema cubano.

O Festival Leo Brouwer, em sua terceira edição, realizará o encontro entre Leo Brouwer e Shin–ichi Fukuda para homenagear um dos ícones da cultura musical japonesa, o visionário e universal Toru Takemitsu. Isso se dará por meio da estreia brasileira do Concerto da Requiem, in Memoriam Toru Takemitsu II na abertura do Festival com a Orquestra do Theatro Municipal de São Paulo, dirigida pelo próprio autor. Estão também previstas as execuções de: Toward the sea, para flauta em sol e violão, do mestre japonês, obra que teve sua primeira parte estreada por Leo Brouwer em 1981; e Hika: in Memorian Toru Takemitsu I, do mestre cubano.

Foto: Cristina Azuma e Paulo Bellinati



Monina, por Sergio Abreu


 Não tenho como resumir em poucas palavras minha convivência com Dona Monina. Ela era uma enciclopédia de música, de vida, de elegância, de caráter, de coerência, de integridade artística. Nada com ela era vulgar. Era uma pessoa profundamente complexa; no entanto, sabia mostrar simplicidade em tudo o que fazia na música. Isso é imediatamente constatado quando se ouve uma interpretação dela ao violão: tudo no lugar, tudo bem sentido e pensado, tudo elegante, nada rebuscado ou pretensioso. Sua interpretação emana do sentido contido na própria música, sem apelar para qualquer recurso artificial, com uma simplicidade que apenas os sábios conseguem atingir.

Convivi com ela desde os 12 anos de idade e posso dizer, sem nenhuma dúvida ou exagero, que sem ela eu não teria tido a carreira que tive, nem como músico, nem como luthier. Levados pela mão de nosso avô, eu e meu irmão, Eduardo, percebemos, desde o nosso primeiro encontro, estar lidando com um ser humano sem par. Sabíamos que estávamos recebendo um presente único, sendo que sua presença amiga permaneceu conosco durante o meio século que se passou desde então, por maior que fosse a distância física nos separando.

Adolfina Raitzin nasceu na Argentina, em 3 de maio de 1921, e teve uma infância diferenciada. Seu pai era um psiquiatra revolucionário, que tratava os doentes mentais em liberdade (motivo pelo qual a localidade onde estabeleceu sua clínica passou a se chamar Open-Door). E ela foi criada junto com esses pacientes e teve sua formação escolar com eles, que foram seus professores. Talvez isso tenha ajudado a formar o ser humano singular que ela se tornou.

Desde muito cedo estudou violão com Domingo Prat (que a ela se referiu em termos superlativos em seu  Diccionario de Guitarristas, publicado em 1934) e também piano, com Ricardo Viñes (durante o período em que ele morou na Argentina, de 1930 a 1936). A propósito, Ricardo Viñes (1875-1943), célebre pianista catalão que viveu em Paris durante as três primeiras décadas do século XX, foi o intérprete preferido de Debussy e Ravel, estreando grande número de suas composições, várias delas dedicadas a ele, além de ter sido também o responsável pela primeira audição pública da Suite Iberia, de Albeniz.

Adolfina decidiu-se definitivamente pelo violão quando foi apresentada a Andrés Segovia e este a convidou para estudar com ele. Porém, nunca abandou o piano. Em seu diário, ela escreveu, naquele dia: "He tocado hoy para Andrés Segovia y le gustó. Yo prometo que voy a ser una gran artista". Estudou regularmente com Segovia durante vários anos e sobre ele tinha sempre as palavras mais elogiosas e carinhosas. Foi uma das poucas pessoas que tiveram, de fato, aulas sequenciais e uma convivência prolongada com o grande violonista. Ela conservava na parede uma antiga foto emoldurada de Segovia com a dedicatória: "Para Adolfina Raitzin, musa y artista". Tive também a oportunidade de ver alguns manuscritos musicais que ela recebeu do mestre, com belíssima caligrafia e cuidadosos dedilhados.

Durante a juventude, Adolfina Raitzin teve a oportunidade de fazer amizade com músicos de várias nacionalidades que se hospedavam na quinta de seus pais quando tocavam em Buenos Aires. Entre eles, recordo-me dos nomes de Yehudi Menuhin,William Kapell, Henryk Szering. Este último ficou emocionado quando mencionei o nome dela após um belíssimo recital que deu em Nova York, apenas para convidados, no Centro para Relações Interamericanas, na Park Avenue.

No início da década de 1940, ela se casou com o geólogo brasileiro Elysiário Távora. Pouco depois do casamento, recebeu uma carta de Segovia, então no meio de uma turnê, na qual ele expressava surpresa com a notícia inesperada do matrimônio e prometia-lhe um presente assim que retornasse a Montevidéu. Ele desejava felicidade ao casal, mas, sobretudo, esperava que ela nunca fizesse justiça a um antigo ditado espanhol que dizia que "La mujer bonita es el paraíso de los ojos, el purgatório del bolsillo y el infierno del alma".

Adolfina Raitzin passou a viver no Rio de Janeiro, onde residiu por mais de 30 anos e teve dois filhos brasileiros, Ruy Alejandro Távora e Virgílio Raitzin Távora, ambos diplomatas de carreira. Embora visitasse seu país natal regularmente, só voltou a morar na Argentina em 1977, quando o marido se aposentou. Tendo desistido muito jovem da carreira de concertista, ainda assim continuou a se apresentar esporadicamente em público ou em transmissões radiofônicas. Em 1950, já tendo adotado o nome artístico Monina Távora, ela realizou um recital na Escola Nacional de Música do Rio de Janeiro que causou assombro no meio musical carioca. A partir de então passou a ser muito solicitada por vários violonistas da cidade. Nessa mesma época, estabeleceu sólida amizade especialmente com meu avô, Antônio Rebello, que por sua vez lhe apresentou meu pai, Osmar Abreu, bem como seu aluno Jodacil Damaceno, que com ela estudaram durante um período relativamente breve, porém extremamente proveitoso. No início da década de 1950, Adolfina Raitzin passou dois anos com o marido e os filhos nos Estados Unidos, quando recebeu vários convites para reiniciar a carreira musical. Durante essa temporada americana, passou uma semana em Lakeville trabalhando com Wanda Landowska a interpretação de música renascentista e barroca. Seu ultimo recital em público ocorreu no Town Hall, em New York, em 1952, pouco antes do seu retorno ao Rio de Janeiro, com sucesso arrebatador tanto de público quanto de crítica, tendo a Guitar Review se referido ao evento como "Brilliant Argentinean guitarist Monina Távora in a smashing Town Hall debut". Fiquei surpreso com a legião de admiradores dela que encontrei naquela cidade quando lá estive pela primeira vez, em 1970.

Foi em 1960 que meu irmão e eu fomos a ela apresentados por nosso avô e passamos a ter aulas regulares pelos 10 anos seguintes. A partir do final dessa década, ela começou a dar aulas intensivas também para os irmãos Sergio e Odair Assad.

Admirada e respeitada pelos violonistas cariocas, era, porém, igualmente temida por eles devido a sua reputação de perfeccionista, exigente e intransigente. Como consequência, suas maiores amizades no Rio de Janeiro se deram no meio musical não violonista. Entre seus grandes amigos e admiradores, estavam o casal Francisco e Lidy Mignone, o casal Arnaldo Estrella e Mariuccia Jacovino e o crítico Antonio Hernandez. Também eram visitantes frequentes de seu espaçoso apartamento na Avenida Ruy Barbosa, com vista deslumbrante para a baía de Guanabara, os pianistas Antônio Guedes Barbosa e Arnaldo Cohen, o violoncelista Iberê Gomes Grosso, o cravista Roberto de Regina, além de cantores, violinistas e compositores.

Infelizmente, nem todos os seus conselhos eram práticos ou realizáveis. Tendo sido grande admiradora do compositor Edino Krieger, este recentemente me pediu notícias suas e me relatou um encontro que tiveram anos atrás em que ela o exortou a largar o trabalho burocrático que fazia na Funarte para se dedicar inteiramente à composição, dizendo-lhe:
- Sr. Edino, um compositor da sua categoria e com o seu talento não tem o direito de desperdiçar seu tempo com outra coisa que não seja a música.
- Dona Monina, não tenho condições de ganhar a vida apenas como compositor. Se eu largar este trabalho, vou passar fome.
- Sr. Edino, passe fome, mas faça só música.

Pouco depois de trocar a carreira de concertista pela de luthier, decidi fazer um violão especialmente para ela, pois sua avaliação e seus comentários seriam de valor inestimável. E, para minha grande surpresa e felicidade, o instrumento que lhe enviei em 1984 a estimulou a tocar novamente, mas não em público. Mas a partir de então Dona Monina realizou muitas gravações utilizando um gravador de fita cassete caseiro, até que uma grave doença, conhecida como síndrome Guillain-Barré, quase lhe tirou a vida em meados da década de 1990 e a impediu definitivamente de tocar. Embora sem qualidade sonora profissional, ainda assim essas gravações exibem claramente seu excepcional estilo musical e violonístico. Estão comigo há quase dez anos. Ficarei aguardando uma oportunidade de conversar pessoalmente com seu filho sobrevivente sobre que destino dar às mesmas, já que ela própria se opunha à divulgação, muito menos à comercialização.

No ano 2000 Dona Monina retornou com o marido ao Rio de Janeiro, onde ficou durante cinco anos. Já viúva, voltou à Argentina para passar seus últimos anos na casa do filho mais velho, em Open-Door, mesma região em que havia passado a infância e a adolescência. Seu estado de saúde sofreu um abalo devastador com a morte inesperada, em outubro do ano passado, de seu filho mais novo, Virgílio. Eu tinha esperança de que, passado o impacto inicial, ela conseguisse aos poucos se recuperar. Isso infelizmente não aconteceu, e ela faleceu ao meio-dia de quarta-feira, 17 de agosto de 2011, no Rio de Janeiro.

Apesar de estar contrariando suas instruções, creio que ela me perdoará por aproveitar este momento para tornar disponíveis duas das primeiras gravações que ela me enviou pouco depois de receber o meu violão: Balada para Martin Fierro, do compositor argentino Ariel Ramirez, e Milonga Triste, do também argentino Agustín Piana.

Essas gravações podem ser ouvidas no link abaixo, bem como comentários de vários músicos.

Foto: Lançamentos (26/10/11)



Ensemble de Violões


Formados especialmente para o Festival Leo Brouwer e dirigidos por Celso Delneri, executaram repertórios inusitados nos Festivais de 2008 e 2009 com obras de Leo Brouwer e Sérgio Assad.  Para o Festival Brouwer 2011, o Ensemble de Violões está constituído de 17 violonistas, alunos e ex-alunos da Graduação e Pós-Graduação do Departamento de Música da ECA-USP e membros discentes dos Cursos de Música da Universidade Cruzeiro do Sul e da Universidade Estadual de Maringá. Neste ano foram escolhidas duas composições para grande conjunto de violões: Electric Counterpoint, de Steve Reich, escrita em 1986, comissionada pela Brooklyn Academy e Brooklyn Philarmonic para Pet Metheny; e Avalon, do compositor e violonista Iury Cardoso, do Departamento de Música da ECA-USP, na versão para 15 violões, especialmente encomendada para o Festival Leo Brouwer.

Foto: Palestra Luciano Morais


Foto: Palestra Humberto Amorim