terça-feira, 1 de novembro de 2011

Monina, por Sergio Abreu


 Não tenho como resumir em poucas palavras minha convivência com Dona Monina. Ela era uma enciclopédia de música, de vida, de elegância, de caráter, de coerência, de integridade artística. Nada com ela era vulgar. Era uma pessoa profundamente complexa; no entanto, sabia mostrar simplicidade em tudo o que fazia na música. Isso é imediatamente constatado quando se ouve uma interpretação dela ao violão: tudo no lugar, tudo bem sentido e pensado, tudo elegante, nada rebuscado ou pretensioso. Sua interpretação emana do sentido contido na própria música, sem apelar para qualquer recurso artificial, com uma simplicidade que apenas os sábios conseguem atingir.

Convivi com ela desde os 12 anos de idade e posso dizer, sem nenhuma dúvida ou exagero, que sem ela eu não teria tido a carreira que tive, nem como músico, nem como luthier. Levados pela mão de nosso avô, eu e meu irmão, Eduardo, percebemos, desde o nosso primeiro encontro, estar lidando com um ser humano sem par. Sabíamos que estávamos recebendo um presente único, sendo que sua presença amiga permaneceu conosco durante o meio século que se passou desde então, por maior que fosse a distância física nos separando.

Adolfina Raitzin nasceu na Argentina, em 3 de maio de 1921, e teve uma infância diferenciada. Seu pai era um psiquiatra revolucionário, que tratava os doentes mentais em liberdade (motivo pelo qual a localidade onde estabeleceu sua clínica passou a se chamar Open-Door). E ela foi criada junto com esses pacientes e teve sua formação escolar com eles, que foram seus professores. Talvez isso tenha ajudado a formar o ser humano singular que ela se tornou.

Desde muito cedo estudou violão com Domingo Prat (que a ela se referiu em termos superlativos em seu  Diccionario de Guitarristas, publicado em 1934) e também piano, com Ricardo Viñes (durante o período em que ele morou na Argentina, de 1930 a 1936). A propósito, Ricardo Viñes (1875-1943), célebre pianista catalão que viveu em Paris durante as três primeiras décadas do século XX, foi o intérprete preferido de Debussy e Ravel, estreando grande número de suas composições, várias delas dedicadas a ele, além de ter sido também o responsável pela primeira audição pública da Suite Iberia, de Albeniz.

Adolfina decidiu-se definitivamente pelo violão quando foi apresentada a Andrés Segovia e este a convidou para estudar com ele. Porém, nunca abandou o piano. Em seu diário, ela escreveu, naquele dia: "He tocado hoy para Andrés Segovia y le gustó. Yo prometo que voy a ser una gran artista". Estudou regularmente com Segovia durante vários anos e sobre ele tinha sempre as palavras mais elogiosas e carinhosas. Foi uma das poucas pessoas que tiveram, de fato, aulas sequenciais e uma convivência prolongada com o grande violonista. Ela conservava na parede uma antiga foto emoldurada de Segovia com a dedicatória: "Para Adolfina Raitzin, musa y artista". Tive também a oportunidade de ver alguns manuscritos musicais que ela recebeu do mestre, com belíssima caligrafia e cuidadosos dedilhados.

Durante a juventude, Adolfina Raitzin teve a oportunidade de fazer amizade com músicos de várias nacionalidades que se hospedavam na quinta de seus pais quando tocavam em Buenos Aires. Entre eles, recordo-me dos nomes de Yehudi Menuhin,William Kapell, Henryk Szering. Este último ficou emocionado quando mencionei o nome dela após um belíssimo recital que deu em Nova York, apenas para convidados, no Centro para Relações Interamericanas, na Park Avenue.

No início da década de 1940, ela se casou com o geólogo brasileiro Elysiário Távora. Pouco depois do casamento, recebeu uma carta de Segovia, então no meio de uma turnê, na qual ele expressava surpresa com a notícia inesperada do matrimônio e prometia-lhe um presente assim que retornasse a Montevidéu. Ele desejava felicidade ao casal, mas, sobretudo, esperava que ela nunca fizesse justiça a um antigo ditado espanhol que dizia que "La mujer bonita es el paraíso de los ojos, el purgatório del bolsillo y el infierno del alma".

Adolfina Raitzin passou a viver no Rio de Janeiro, onde residiu por mais de 30 anos e teve dois filhos brasileiros, Ruy Alejandro Távora e Virgílio Raitzin Távora, ambos diplomatas de carreira. Embora visitasse seu país natal regularmente, só voltou a morar na Argentina em 1977, quando o marido se aposentou. Tendo desistido muito jovem da carreira de concertista, ainda assim continuou a se apresentar esporadicamente em público ou em transmissões radiofônicas. Em 1950, já tendo adotado o nome artístico Monina Távora, ela realizou um recital na Escola Nacional de Música do Rio de Janeiro que causou assombro no meio musical carioca. A partir de então passou a ser muito solicitada por vários violonistas da cidade. Nessa mesma época, estabeleceu sólida amizade especialmente com meu avô, Antônio Rebello, que por sua vez lhe apresentou meu pai, Osmar Abreu, bem como seu aluno Jodacil Damaceno, que com ela estudaram durante um período relativamente breve, porém extremamente proveitoso. No início da década de 1950, Adolfina Raitzin passou dois anos com o marido e os filhos nos Estados Unidos, quando recebeu vários convites para reiniciar a carreira musical. Durante essa temporada americana, passou uma semana em Lakeville trabalhando com Wanda Landowska a interpretação de música renascentista e barroca. Seu ultimo recital em público ocorreu no Town Hall, em New York, em 1952, pouco antes do seu retorno ao Rio de Janeiro, com sucesso arrebatador tanto de público quanto de crítica, tendo a Guitar Review se referido ao evento como "Brilliant Argentinean guitarist Monina Távora in a smashing Town Hall debut". Fiquei surpreso com a legião de admiradores dela que encontrei naquela cidade quando lá estive pela primeira vez, em 1970.

Foi em 1960 que meu irmão e eu fomos a ela apresentados por nosso avô e passamos a ter aulas regulares pelos 10 anos seguintes. A partir do final dessa década, ela começou a dar aulas intensivas também para os irmãos Sergio e Odair Assad.

Admirada e respeitada pelos violonistas cariocas, era, porém, igualmente temida por eles devido a sua reputação de perfeccionista, exigente e intransigente. Como consequência, suas maiores amizades no Rio de Janeiro se deram no meio musical não violonista. Entre seus grandes amigos e admiradores, estavam o casal Francisco e Lidy Mignone, o casal Arnaldo Estrella e Mariuccia Jacovino e o crítico Antonio Hernandez. Também eram visitantes frequentes de seu espaçoso apartamento na Avenida Ruy Barbosa, com vista deslumbrante para a baía de Guanabara, os pianistas Antônio Guedes Barbosa e Arnaldo Cohen, o violoncelista Iberê Gomes Grosso, o cravista Roberto de Regina, além de cantores, violinistas e compositores.

Infelizmente, nem todos os seus conselhos eram práticos ou realizáveis. Tendo sido grande admiradora do compositor Edino Krieger, este recentemente me pediu notícias suas e me relatou um encontro que tiveram anos atrás em que ela o exortou a largar o trabalho burocrático que fazia na Funarte para se dedicar inteiramente à composição, dizendo-lhe:
- Sr. Edino, um compositor da sua categoria e com o seu talento não tem o direito de desperdiçar seu tempo com outra coisa que não seja a música.
- Dona Monina, não tenho condições de ganhar a vida apenas como compositor. Se eu largar este trabalho, vou passar fome.
- Sr. Edino, passe fome, mas faça só música.

Pouco depois de trocar a carreira de concertista pela de luthier, decidi fazer um violão especialmente para ela, pois sua avaliação e seus comentários seriam de valor inestimável. E, para minha grande surpresa e felicidade, o instrumento que lhe enviei em 1984 a estimulou a tocar novamente, mas não em público. Mas a partir de então Dona Monina realizou muitas gravações utilizando um gravador de fita cassete caseiro, até que uma grave doença, conhecida como síndrome Guillain-Barré, quase lhe tirou a vida em meados da década de 1990 e a impediu definitivamente de tocar. Embora sem qualidade sonora profissional, ainda assim essas gravações exibem claramente seu excepcional estilo musical e violonístico. Estão comigo há quase dez anos. Ficarei aguardando uma oportunidade de conversar pessoalmente com seu filho sobrevivente sobre que destino dar às mesmas, já que ela própria se opunha à divulgação, muito menos à comercialização.

No ano 2000 Dona Monina retornou com o marido ao Rio de Janeiro, onde ficou durante cinco anos. Já viúva, voltou à Argentina para passar seus últimos anos na casa do filho mais velho, em Open-Door, mesma região em que havia passado a infância e a adolescência. Seu estado de saúde sofreu um abalo devastador com a morte inesperada, em outubro do ano passado, de seu filho mais novo, Virgílio. Eu tinha esperança de que, passado o impacto inicial, ela conseguisse aos poucos se recuperar. Isso infelizmente não aconteceu, e ela faleceu ao meio-dia de quarta-feira, 17 de agosto de 2011, no Rio de Janeiro.

Apesar de estar contrariando suas instruções, creio que ela me perdoará por aproveitar este momento para tornar disponíveis duas das primeiras gravações que ela me enviou pouco depois de receber o meu violão: Balada para Martin Fierro, do compositor argentino Ariel Ramirez, e Milonga Triste, do também argentino Agustín Piana.

Essas gravações podem ser ouvidas no link abaixo, bem como comentários de vários músicos.