quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Monina Távora, por Sérgio Assad

Fiquei muito comovido com a beleza do texto escrito pelo Sérgio Abreu sobre a nossa querida amiga e mestra, Monina Távora. Dona Monina, como a chamávamos, sempre teve especial apreço e admiração pelo Sérgio, destacando-o como um grande ser humano, um dos melhores exemplos de simplicidade, generosidade e dedicação ao próximo que ela conhecia. Essa admiração foi e é, sem nenhuma dúvida, verdadeira e recíproca.

Meu irmão Odair e eu ouvimos falar de D. Monina pela primeira vez em 1967, quando vivíamos em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo. Nessa ocasião, nosso pai, Seu Jorge Assad, buscava um orientador musical do mais alto nível para meu irmão e eu. Ele ouviu com muita atenção o relato feito pelo jornalista Oromar Terra, que, em visita a Ribeirão Preto, enalteceu ao máximo as qualidades do ensinamento ministradas por D.Monina. Oromar nos fez ouvir os violões dos irmãos Sergio e Eduardo Abreu, que eram os maiores destaques dentre os alunos dela. Ficamos encantados!!! Era a primeira vez que ouvíamos algo tão bonito em termos de som e perfeição saindo daquele instrumento tão familiar que já tocávamos, embora de uma forma ainda rudimentar. O nosso pai não teve dúvidas e acabou nos levando ao Rio de Janeiro para que a conhecêssemos. O encontro deu-se ainda no ano de 1967 e selou definitivamente o nosso futuro, dando-nos direção e nova perspectiva de vida.

Nós havíamos aprendido a tocar o repertório dos chorões, que era a paixão do nosso pai, um exímio bandolinista na tradicional linhagem de Jacob Bittencourt. Provavelmente teríamos seguido diletantemente pelos caminhos da música tradicional e hoje tocaríamos música amadoristicamente, fazendo eco ao que fez nosso pai por toda a sua vida. Graças às habilidades de D. Monina e a paixão e a tenacidade do Seu Jorge, que se mudou com a família toda para o Rio para que pudéssemos estudar com ela, hoje temos uma carreira internacional no violão clássico. Soa um tanto irônico dizer que os dois, Seu Jorge e D. Monina, faleceram com poucos meses de diferença um do outro. Nosso pai também se foi em maio deste ano, deixando-nos muita, muita saudade!

Dona Monina era uma pessoa fascinante e, para dois meninos interioranos que nunca haviam tido acesso a pessoas daquele nível, um grande enigma. Ela era muito culta e podia dissertar horas sobre assuntos variados, descortinando um mundo novo ao qual ainda não tínhamos tido acesso.

Nossas aulas eram geralmente aos domingos à tarde. Começavam por volta das duas horas e seguiam pelo menos até as seis. O mais difícil, na fase inicial, foi começar a montar um programa que cobrisse os vários estilos musicais: Renascença, Barroco, Clássico e Moderno. Como não tínhamos experiência, dado que o máximo que havíamos feito em termos de violão clássico era um pouco do repertório latinoamericano de Barrios e Fleury, tudo o que ela dizia era novidade e de um valor
imensurável. Dona Monina era muito rigorosa quanto ao tempo e à atenção que deveriam ser dedicados ao estudo do instrumento. Ela falava em oito horas diárias, embora soubesse ser impossível pra nós tamanha dedicação. Afinal, éramos estudantes secundários e tínhamos outros afazeres além da música. Estudávamos talvez umas quatro horas diárias, e ela podia, a cada nova aula, detectar facilmente se havíamos realmente estudado ou não.

Dona Monina não era analítica na abordagem do discurso musical, preferindo trabalhar com a intuição. Ela tinha uma capacidade impar de buscar nos alunos a força intuitiva de cada um. Uma das suas máximas: “Olhem com atenção as obras que vocês se propõem a interpretar. Analisem com cuidado, mas, no momento de tocá-las, sigam sempre a intuição. A análise é bastante importante, mas pode dar margem a erros, enquanto a intuição é infalível”. Esse assunto é muito polêmico, mas eu segui com muito rigor esse ensinamento e o utilizo com bastante êxito com os meus alunos no Conservatório de Música de San Francisco, onde dou aulas nos dias de hoje.

Sim, D. Monina era polêmica! Ela tinha a visão romântica de que o artista verdadeiro deve passar necessidade para evoluir, dedicar-se total e exclusivamente a sua arte e não fazer nenhum tipo de concessão. Tivemos problemas com ela relacionados a este último pensamento. Nós, que vínhamos do interior de São Paulo e estávamos habituados à linguagem da música popular, acabamos por entrar numa zona de atrito com ela e fomos proibidos de tocar o nosso velho repertório, que incluía, entre outros, João Pernambuco, Dilermando Reis, Pixinguinha e Jacob do bandolim. Realmente abandonamos a prática desse repertório por algum tempo, mas era muito difícil abandonar a nossa própria origem. Assim, seguimos buscando alternativas que acabamos por encontrar em Gnatalli e Piazzolla. Esses dois eram considerados por ela muito bons, apesar de serem compositores de música popular, segundo ela.

Estudamos com D. Monina durante sete anos, de 1969 a 1976, época em que ela decidiu voltar à Argentina. Aqueles anos foram muito férteis, anos nos quais pudemos acumular um grande conhecimento que nos serve como guia até os dias de hoje. Dentre tudo o que aprendemos com ela, destaco oito pontos:
1) Completa dedicação ao instrumento, com horas e horas de estudo diário;
2) Paciência metódica e perseverança, com ênfase na repetição de passagens predeterminadas em um ritmo muito lento;
3) Incansável curiosidade e vontade de aprender coisas novas;
4) A utilização da voz como guia insubstituível no processo de aprendizagem (O canto seria a ponte mais imediata entre a análise e a intuição);
5) Evolução por meio da intuição, acreditando nela, alimentando-a e nutrindo-se em retorno;
6) Desenvolvimento da capacidade interpretativa, praticando determinados trechos com diferentes enfoques de expressão;
7) Compreensão da diferença entre estilos musicais (Para isso, ela se servia de muitas imagens, referindo-se aos costumes das diferentes épocas e países. Referia-se também à forma de se vestir, ao comportamento social de cada época e ao papel que tinha a música nesses contextos);
8) Flexibilidade extrema no que tange à agógica e à dinâmica musical (Nesse ponto, ela era realmente extraordinária, podendo demonstrar facilmente como o bom emprego da dinâmica altera completamente uma interpretação. Às vezes nos surpreendia com pedidos que eram o oposto do que havia determinado na semana anterior).

Ter o aval de D. Monina no meio musical carioca nos idos de 1970 era uma benção. O seu nome e a qualidade de seu trabalho eram amplamente reconhecidos e abriam qualquer porta de teatro musical no Rio. Assim foi que debutamos no Rio, logo em 1972, no “foyer” do Teatro Municipal e demos início a nossa carreira. Muitos outros alunos passaram por D. Monina, que se transformou numa figura mítica naqueles anos.

Outros duos formados por irmãos também passaram por ela. Lembro-me pelo menos de dois: os irmãos Montevecchi, de São Paulo, e os irmãos Casares, de Buenos Aires. Nem todos os seus alunos prosseguiram na carreira musical, mas tiveram a sorte de poder conviver com um dos personagens musicais ligados ao violão mais intensos e interessantes que já passaram pelo Brasil.

Tenho imenso orgulho por ter sido seu aluno e me sinto um felizardo por estar no pequeno grupo de privilegiados que caminhou ao seu lado durante sua estadia no Brasil.

(Fórum do Violão, 22/08/2011.)