quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Sérgio Abreu, por Ricardo Dias

Na década de 1950, o violão clássico era quase desconhecido. Havia violão "solado", geralmente em valsas e choros capitaneados por Dilermando Reis. Nessa época, dois pioneiros se destacavam: em São Paulo, o uruguaio Isaías Savio (1902 – 1977); no Rio de Janeiro, o açoriano Antonio Rebello (1902/1965).

Eventualmente, durante as aulas de Rebello, seus netos atacavam: iam se aproximando sorrateiramente e, quando menos se esperava, passavam os dedos pelas cordas dos violões que estavam sendo tocados e saíam correndo. Numa dessas incursões, o neto menor foi capturado pelo
avô, que lhe perguntou: “Eduardo, você quer tocar violão? Se quiser, eu te ensino. Se o Sergio também quiser…”. Para o bem de todos e felicidade geral, o Sergio quis.

Sergio Rebello Abreu nasceu no Rio de Janeiro, em 1948. A data exata não será dita aqui, para sossego do próprio, pouco afeito a cumprimentos. Um pouco antes do episódio narrado acima, ele costumava ouvir atentamente as aulas de sua mãe, que estudava piano. E, tão logo as pessoas se afastavam, quando tinha a certeza de estar só – certeza equivocada, pois houve testemunhas do fato –, reproduzia no instrumento tudo que havia ouvido. Teve umas poucas aulas, que resultaram,
curiosamente, em seu primeiro recital, que foi ao piano! Tempos depois ele começou a ter as tais aulas de violão com o irmão, ministradas pelo avô. Numa casa em que não havia televisão e pouco se ouvia rádio, a música era constante no toca-discos, sempre de álbuns cuidadosamente
selecionados pelo gosto apurado de Rebello. Assim, numa época em que as macacas de auditório se esgoelavam nos auditórios da Rádio Nacional, a família Rebello ouvia Bach, Beethoven, Britten, Shostakovich e, ao violão, o nome maior, Segovia. Como é chavão nessas histórias, logo o professor Rebello percebeu que não tinha muito mais a ensinar àqueles dois jovens. O pai de ambos, Osmar Abreu, também aluno de quem acabaria sendo seu sogro e que tocou na orquestra de Dilermando Reis, concordava. Nessa época também, por acaso - se é que acaso existe - estava no Brasil uma discípula de Segovia. Uma das poucas pessoas que de fato haviam tido aulas regulares com o maestro estava ali, a poucos metros da casa da família. Antonio Rebello não teve dúvidas: levou os netos a ela, Adolfina Raitzin de Tavora ou, simplesmente, Monina Tavora.

Com uma personalidade singular, Dona Monina logo percebeu que estava diante de material raro. Bem ao seu jeito, pouco tocou para eles, limitando-se a sugerir mais que mostrar, de forma que pudessem encontrar seus próprios caminhos. E quem viu os dois irmãos tocando, logo percebeu que os estilos eram diferentes, mas unidos por uma busca de perfeição que, se já era de nascença, foi "agravada" pela mestra. Cautelosa, ela foi lançando-os nos palcos aos poucos, em pequenos
recitais que, muito vagarosamente, iam aumentando de tamanho e importância. Até os violões que os irmãos passaram a usar eram dela: um Santos Hernandez, de 1920, e um Herrmann Hauser, de 1930. O sucesso do duo até hoje é lembrado, mesmo que a parceria tenha se desfeito em
meados dos anos 1970. Aliás, antes do final, ambos, em anos seguidos, disputaram o famoso Concurso de Paris. Sergio ganhou, Eduardo ficou em segundo. Com o fim do duo, Sergio seguiu carreira solo e lançou um disco emblemático: Sergio Abreu Interpreta Paganini e Sor. Poucas vezes na indústria fonográfica se viu algo assim: apenas interpretações definitivas. É um clássico automático, até hoje referência nesse repertório.

Sergio estudou com Guido Santórsola; tocou com Maria Lucia Godoy, com quem gravou um belo disco de Villa-Lobos; tocou com Norton Morozowisk, Yehudi Menuhin e com diversas orquestras pelo
mundo; escreveu arranjos e se cansou. Tocar sempre lhe fora incômodo pela rotina estafante, cheia de viagens e compromissos sociais, e também por algo que para nós, que o ouvimos, soa inacreditável: falta de satisfação com o resultado musical. Tendo um alto grau de exigência, ele
sempre terminava de tocar com a sensação de que faltava algo. Numa característica muito própria, aceitava os elogios, mas, no íntimo, não se satisfazia. Por sorte - se é que sorte existe - Sergio foi se interessando por luteria. Comprava uma ferramenta aqui, uma madeira ali, fazia uma ou outra aula com Tom Humphrey, e o vírus foi se instalando. Assim, abandonar os palcos foi para ele natural, gradual e calculado.

Sergio tem características únicas. Se este texto foi publicado, certamente foi porque ele não conseguiu impedi-lo. Muito provavelmente, ele sequer o leu. Se lesse, reclamaria do "exagero". E para quem não o conhece, pode soar exagerado mesmo. Uma vez, por exemplo, apresenteilhe um arranjo que estava fazendo de um trecho da ópera Flauta Mágica para violão solo. Ele foi lendo, até que assinalou que determinado trecho tinha um baixo errado. Justificou dizendo que naquele ponto a trompa fazia a nota X, o cello, Y, e sei lá mais quem, Z. Perguntei-lhe como sabia disso, já que não estava com o original nas mãos. Bem, ele sabia a ópera de cor. Sabe muitas outras, diga-se. A violonista americana Alice Artzt também conta que estava dirigindo com sono quando pediu a Sérgio que conversasse um pouco para mantê-la acordada. Ele pensou alguns segundos e começou: “O Cravo Bem Temperado, Prelúdio 1. A peça começa com… Seguiu assim analisando todas as peças da obra. De memória! Quase trinta anos após parar de tocar profissionalmente, ele ainda sabe praticamente todo o repertório do instrumento. Não se lembra
daquilo que comeu no almoço, mas sabe que a nota no 124º compasso da peça do compositor Fulano é um Si, e não um Si bemol. Eventualmente ele sabe até quando não conhece a música! Sua explicação para isso é singela: se uma pessoa ouve "nós vai", não precisa conhecer o resto da frase para saber que está errada. Em música acontece o mesmo. Para ele, claro, pois nós, “reles mortais”, continuamos na base do "nós vai" e "a gente fomos", sem nada perceber.

Na luteria, Sergio Abreu se tornou um dos maiores luthiers do mundo. Simples assim. Obsessivo, cuidou de cada um dos quase 600 violões que construiu com o mesmo cuidado que dispensou a cada nota que tocou. Uma pessoa de prestígio quase legendário, jamais se recusou a ajudar quem quer que tenha lhe batido à porta, seja em luteria, seja em música. Muitos dos grandes músicos de nosso país e de outros têm em sua formação o dedo dele dando aquele toque preciso e no ponto, na mosca, mudando tudo. No entanto, continua decepcionando quem o procura atrás da fórmula mágica. Ela não é mágica, e ele a distribui para quem quiser: trabalho, trabalho duro, trabalho humilde, começando do zero, indo devagar. Ele sabe a dificuldade pela qual passou: unha frágil como apel,
foi aprender a fazer próteses com dentistas; dedo indicador da mão direita pequeno e torto, foi fazer escala com médio e anular; timidez, estudou tanto que a música ficou acima de tudo, tapando até o público. Jodacil Damaceno dizia que havia ocasiões em que Sergio parecia se assustar com os aplausos, como se tivesse esquecido que tinha gente olhando. Talvez a melhor homenagem a lhe fazer fosse simplesmente não fazer nada. “Cinquenta anos daqueles primeiros recitais quase amadores? Bobagem! É apenas uma data”, ele dirá. Chamá-lo ao palco para ser aplaudido? É até crueldade. Não somos pessoas da mesma categoria que ele; somos falíveis. Portanto, cometeremos uma indelicadeza em homenageá-lo e agradecê-lo pessoalmente por tudo que fez em prol do violão e da música.