quinta-feira, 27 de outubro de 2011

O VIOLÃO NO RIO DE JANEIRO: Difusão da técnica e da constituição do repertório de concerto, por Marcia Taborda

Antecedentes

Os anos que envolveram a passagem do século XVIII para o século XIX adquiriram significativa importância na trajetória do violão. Foi um período de transformações marcado pelo declínio de quase dois séculos de apogeu da guitarra de cinco ordens, a guitarra espanhola, e de inovações que encaminharam o instrumento para uma nova configuração. Nesse momento de transição conviveram tanto guitarras de cinco cordas simples como guitarras de seis cordas duplas, instrumento bastante difundido na Espanha. Tal fato é diagnosticado por meio da literatura musical e principalmente dos métodos de ensino divulgados na época.

Em 1799 o compositor italiano Federico Moretti, que serviu à corte espanhola como oficial do exército, publicou Principios para tocar la guitarra de seis ordenes. Dada à luz em Madrid, a obra se destaca pelo pioneirismo com que foram abordados os aspectos técnicos relacionados ao ensino do instrumento. O autor fornece ainda raro testemunho desse processo de transição: “Embora eu use uma guitarra de sete cordas simples, me pareceu oportuno acomodar esses Principios para a de seis cordas duplas por ser a que geralmente é tocada na Espanha. Essa mesma razão me obrigou a imprimi-los em italiano, em 1792, adaptados à guitarra de cinco cordas
duplas, pois naquele tempo ainda não se conhecia na Itália a de seis cordas”.

Ficamos assim sabendo que Moretti foi precursor no uso de instrumento com cordas simples; daí o extraordinário desenvolvimento técnico por ele proposto nos Principios. Na Espanha, a guitarra de cinco cordas duplas foi substituída pela de seis cordas duplas, instrumento que não teve acolhida na Itália. Firmou-se então o violão de seis cordas simples.

Tal fato explica o porquê de o instrumento ter se espalhado pela Europa e de lá para as Américas com o nome de “viola francesa”. Embora não seja possível conferir certidão de nascimento ao violão atual, acredita-se que ele tenha surgido em algum lugar fora da Espanha. Cumpre acrescentar que, embora na Espanha a divulgação do instrumento de seis cordas simples tenha sido posterior, o país por certo lhe conferiu certidão de batismo ao desenvolver com extremo apuro técnicas de luteria que estabeleceram padrões de construção aceitos e ainda hoje vigentes
em toda a parte. Dentre os grandes mestres espanhóis na arte de construir instrumentos, destacaram-se Antonio de Torres Jurado (1817-1892), responsável pelo estabelecimento e estandartização das dimensões do violão moderno; Vicente Arias (1845-1912); Manuel Ramirez (1869-1920); e Francisco Simplicio (1874-1932).

Introdução do violão no Rio de Janeiro

Ainda não foi possível precisar data ou fato marcante relacionado à chegada do violão ao Rio de Janeiro no século XIX. É, no entanto, dificílimo acreditar que com o numeroso desembarque de estrangeiros, a partir de 1808, não houvesse também aqui chegado a novidade da viola francesa, instrumento que percorria com sucesso as salas de concerto das principais capitais europeias. Acredita-se que em seu translado para o Rio de Janeiro, a Família Real se fez acompanhar por 15 mil portugueses, número que representaria mais de um quarto da população carioca, estimada entre 43 e 50 mil habitantes. Carlos Lessa observa que “com esse impacto demográfico e de gastos, a cidade bruscamente eleva seu patamar de renda, de atividade, de emprego, de exposição, de riqueza, de inovação de costumes e procedimentos”1. Acrescenta ainda que entre 1808 e 1822 foi registrada a fixação de 4.234 estrangeiros, a maioria dos quais provenientes da Espanha (1.500) e França (1.000).

Dentre os inúmeros visitantes que aportaram na cidade, estava Bartolomeu Bortollazzi, músico que trouxe aos cariocas a novidade da viola francesa. Em anúncio publicado no periódico O spectador brasilero (1826) informa: “Professor de música, morador na Rua dos Inválidos, nº 80, faz sciente ao responsável público que, quem quizer aprender música, cantar, tocar viola, viola franceza ou mandolino, elle ensina”.

É, de fato, muito curiosa a presença desse músico no Rio de Janeiro. Italiano nascido em 1773, Bortolazzi foi um virtuose do bandolim, a quem Richard Hummel dedicou seu concerto para o instrumento. Durante a última década do século XVIII, ele transitou pela Europa, alternando visitas a Viena e Londres. Percorreu a Alemanha e voltou a Viena em 1805, onde publicou um modesto método de guitarra, o primeiro de uma série intitulada Periodical Amusements, num total de 24 edições, constando principalmente canções com acompanhamento de viola francesa. Seu método alcançou grande popularidade, comprovada pelas oito edições que teve em Viena. Como última notícia de suas atividades, registram-se trabalhos publicados em Londres durante os anos de 1806 e 1807.

Embora não tenha alcançado lugar de destaque no reino dos grandes compositores e executantes, Bortolazzi adquiriu importância ao deixar uma obra pequena, mas objeto de difusão e divulgação do instrumento num momento em que este era quase que totalmente desconhecido. É importante sobretudo destacar sua preocupação com a elaboração de um método, pois assim a introdução do ensino de viola francesa no Rio de Janeiro contou com a orientação de um profissional qualificado.

Nos anos subsequentes, notícias relacionadas ao violão começaram a aparecer. Deve-se destacar a importância da impressão musical como elemento difusor do instrumento e de seu repertório. Segundo Mercedes Reis Pequeno, “as primeiras oficinas imprimindo música no Rio de Janeiro surgiram no início do século XIX; alguns desses estabelecimentos se incumbiam de editar e vender músicas”2. Dentre os pioneiros, destacaram-se o dinamarquês João Cristiano Müller, que abriu negócio em 1828; o clarinetista alemão João Bartolomeu Klier (1831); e Pierre Laforge, músico francês estabelecido no Rio de Janeiro por volta de 1834, que se destacou, sobretudo, pela impressão regular de peças musicais, dedicando grande parte de seu catálogo à edição de obras populares, notadamente modinhas.

Coube a Laforge a introdução na sociedade carioca do primeiro método de ensino dedicado à viola francesa, já por essa época denominada violão. Na seção de música do Jornal do Comércio (março de 1837), publicou-se o anúncio: “Na imprensa de música de Pierre Laforge, na Rua da Cadeia, nº 89, acaba-se de imprimir as seguintes peças: Methodo de violão, segundo o sistema de Carulli, e Nava, traduzido do italiano por J. Crocco”.

Em meados do século XIX o violão já estava disseminado na cidade do Rio de Janeiro. O Almanak administrativo, mercantil e industrial do Rio de Janeiro, conhecido por Almanak Laemmert, verdadeira radiografia da organização social, econômica e política da cidade, dá detalhes da estrutura imperial, informando ocupantes dos diversos postos. No âmbito da música são noticiados professores, afinadores, estabelecimentos comerciais, instituições e teatros.

No primeiro ano de publicação do Almanak (1844), os poucos anúncios de professores de música, línguas, pintura e dança eram aglutinados numa mesma seção. Seu sucesso pode ser avaliado pelas dimensões que alcançou já em 1848, ano em que apresentou 29 anúncios de professores de música, 25 de línguas, 12 de desenho/pintura e 9 de dança publicados em seções separadas. Com o aumento do número de anunciantes, o almanaque caminhou para a subdivisão da seção de música em professores de canto/piano, instrumentos e um bloco dedicado aos afinadores de piano.

O violão foi pela primeira vez mencionado no Almanaque no ano de 1847. Entre os 18 professores que se anunciaram, estavam:

Demétrio Rivera - piano, violão e rabeca.
Marzianno Bruni – harpa, piano, canto e violão.
Pedro Nolasco Baptista – ophicleide, flauta e violão
Em 1849, surgiu mais um anunciante:
Luiz Vento – canto, violão francez, violoncelo.

Aspecto curioso que se depreende dos anúncios e que se identificou igualmente com a prática dos músicos de choro é a variedade de instrumentos dominados por cada instrumentista. Eles eram, ao mesmo tempo, capazes de ensinar violão, ophicleide, flauta, harpa e cello, característica reveladora da pluralidade do músico brasileiro e, sobretudo, dos malabarismos típicos que envolvem até hoje a batalha pela sobrevivência em nosso país. Isso demonstra também que à época não havia no Brasil a categoria do artista “virtuose”, capaz de realizar façanhas e de se especializar num único instrumento. O violão teve de esperar muitos anos para alcançar esse patamar, ao contrário de outros instrumentos, como o violino e o piano, que em poucos anos foram apresentados por virtuoses em visita à cidade.

Por essa época, Isidoro Bevilacqua, estabelecido no Rio de Janeiro em setembro de 1846, divulgou, no Catálogo Geral das publicações musicais editadas pelo estabelecimento de piano Bevilacqua & C, a edição do método Carcassi (nº1166), traduzido por Rafael Coelho Machado - Methodo de violão, composto e dedicado aos seus discípulos, dividido em três partes, completo e encadernado, s.d. Passo importantíssimo para a difusão das técnicas necessárias à execução do repertório de concerto, esse método alcançou enorme sucesso e especial repercussão no ambiente violonístico, contando com inúmeras edições mantidas até os dias de hoje.

Dom José Amat, professsor de piano e canto que emigrou da Espanha para o Rio de Janeiro em 1848 e personalidade que teve atuação marcante no movimento de fundação da Imperial Academia e Opera Nacional, foi também um importante divulgador do instrumento. Na pequena biografia que faz de Amat, Mello Moraes Filho leva a crer que, em suas atribuições no ramo do bel canto e as aulas que ministrava, Amat fazia-se sempre acompanhar de um violão.

Importante informação da entrada do violão em salas de concerto foi dada por Curt Lange no artigo La muerte de Gottschlak, su repercussion en Rio de Janeiro. Em 31 de agosto houve uma reunião musical no Clube Mozart, da qual participaram José e Ada Heine, Pedro Ferranti, André Gravenstein, o barítono Orlandini e os irmãos Arthur e Annibal Napoleão. “Houve também guitarras, flauta, saxofone e um público tão numeroso que mal se podia transitar”.3

O semanário Vida Fluminense, na crítica que faz ao concerto, informa que a sociedade “foi palco para uma rara apresentação violonística”: “Lisboa, um dos amadores mais notáveis do Rio de Janeiro, começou a desferir do seu violão sons tão repassados de melodia que deixavam em dúvida o instrumento de que eram arrancados. Todos sabem que o violão não se presta facilmente aos cantos ligados, nem à pureza dos sons se o trecho que vai executar-se requer velocidade de digitação. Pois bem: ouçam a fantasia da ‘Traviata’ e a ‘Faceira’ e digam-se depois se continuam a pensar assim.”

Trata-se de Clementino Lisboa, engenheiro formado e violonista amador. Em artigo publicado na revista O violão (1929) e redigido a partir de informações dadas pelo pianista Arthur Napoleão, Lisboa é lembrado como o “primeiro heroe” a apresentar o instrumento em versão solista.

Na passagem do século, vindo de Campos de Goitacazes, chegou ao Rio de Janeiro o músico Ernani de Figueiredo. Na cidade, conheceu músicos, violonistas, apresentando-se em audições públicas e particulares, tão comuns na época. Segundo conta, a primeira apresentação foi realizada na antiga Maison Moderne. A esta, seguiram-se audições no salão do ex-Casino Commercial, no Conservatório Livre do Rio de Janeiro, no Theatro São Pedro e no Club Gymnástico Portuguez, no qual o violão solista aparecia em meios aos mais variados grupos de câmera.

Em julho de 1916, chegou ao Brasil o violonista e compositor paraguaio, Augustín Barrios Mangoré. Destacado concertista, apresentou-se com frequência na Argentina, Uruguai, Chile, Venezuela, incorporando nessa trajetória a riqueza de ritmos da latino-américa, somando-os à tradição do violão espanhol. Sua obra, especialmente a monumental La Catedral, enriqueceu a literatura do instrumento, utilizando recursos técnicos de escalas, arpejos e trêmolos a serviço de sua privilegiada musicalidade.

Seu primeiro concerto público no Rio de Janeiro ocorreu no dia 09 de agosto de 1916, no salão nobre do edifício do Jornal do Commercio. Na primeira temporada carioca, Augustín Barrios realizou ainda dois outros concertos, em 19 de agosto e 09 de novembro, ambos no salão nobre da Associação dos Empregados do Comércio, constando o programa de obras de Arcas, Aguado, Barrios, Coste e Giuliani.

Em 1917 os cariocas receberam a visita da violonista espanhola Josefina Robledo que, entre tantos méritos, possuía a credencial de ter sido aluna direta do grande Tárrega, com quem iniciou seus estudos aos sete anos de idade, encerrandoos em 1909, ano da morte de seu mestre. O primeiro concerto de Robledo no Rio de Janeiro realizou-se em 30 de agosto de 1917 no salão nobre do Jornal do Comércio. Dividido em três partes, a violonista reservou a parte central para a música de câmara, apresentando-se em duo com o violoncelista Fernando Molina.

Josefina Robledo apresentou-se ainda em dois outros recitais. A violonista foi ovacionada e a crítica reputou-lhe o mérito de conseguir interpretar magistralmente em um instrumento “tão rudimentar e de limitados recursos”. Além de impressionar pela técnica, habilidade de execução e utilização dos recursos expressivos do violão, Robledo marcou sua estadia no Rio de Janeiro também pelo trabalho didático que desenvolveu. Foi responsável pela divulgação e pelo estabelecimento dos fundamentos da chamada moderna escola de violão, mais especificamente da escola de Tárrega, fato que pode ser encarado como um divisor de águas na trajetória do ensino do instrumento no país.

Nesse período, o grande mestre do violão no Rio de Janeiro foi Joaquim Francisco dos Santos, conhecido por Quincas Laranjeira. Nascido em Pernambuco, veio para a cidade com seis meses de idade. Dedicou-se ao estudo do instrumento sem o auxílio de um professor, buscando nos antigos métodos de ensino - Carcassi, Carulli, Aguado, Antonio Cano - a informação necessária ao seu aprimoramento. Frequentador da Rabeca de ouro, estabelecimento de música situado à Rua da Carioca, era conhecido e querido no meio musical. Como bom chorão, integrou a Orquestra do Rancho Ameno Resedá, tradicional agremiação carnavalesca da qual faziam parte músicos de primeira linha da cena carioca. Formou diversos músicos, entre os quais Levino Conceição, José Augusto de Freitas, Antonio Rebello. Aliás, ao que parece, não havia violonista na cidade que não mantivesse contato e desfrutasse dos conhecimentos musicais de Quincas. Ele foi precursor do ensino de violão para “senhoras da boa sociedade”, movimento que tomou corpo em fins dos anos 20,contribuindo com a transcrição de canções para as quais provia o acompanhamento, material que passou a publicar no suplemento dominical do Correio da Manhã a partir 1927.

Em fins de 1928, o lançamento da revista “O violão” marcou novo momento na trajetória dos violonistas; pela primeira vez contariam com espaço próprio para a circulação de ideias, veiculação de trabalhos, músicas, técnicas, etc. Muito rica em informações, a revista se revelou uma verdadeira vitrine do violão carioca em suas diferentes frentes de atuação. Publicava artigos sobre a história do instrumento, perfis de artistas, acompanhamento de canções tradicionais, obras para violão solo, fotos de violonistas, anúncios de professores, venda de instrumentos, além de dar notícias do movimento de violão na cidade e em alguns outros estados brasileiros. Enfim, a revista colocava o violão na pauta do dia, ensejando verdadeira discussão sobre as possibilidades de realização do instrumento e defendendo, sobretudo, a bandeira de “nobilitar o violão”. Sob o ponto de vista técnico, a publicação destacava os ensinamentos de Francisco Tárrega, tornando-se porta voz da “moderna escola do violão”.

No ano seguinte o Rio de Janeiro recebeu a visita de dois ilustres concertistas: Regino Sainz de la Maza e Juan Rodriguez, artistas cuja passagem pela cidade foi amplamente documentada pela revista “O violão”. Em 29 de julho, José Augusto de Freitas fez sua estreia no salão nobre do Instituo Nacional de Música. Nascido em 1909 na cidade de Pomba (MG), Freitas veio para o Rio de Janeiro ainda na infância. Como muitos violonistas, iniciou os estudos sozinho até encontrar Quincas Laranjeira, com quem aprendeu a técnica e o repertório dos clássicos. Teve ainda aulas com Augustín Barrios. Posteriormente passou a lecionar violão. O ano musical se encerrou com a presença de Augustín Barrios, então cognominado “O rei do violão”, que retornou à cidade para duas apresentações. Depois disso, o violão mais uma vez saiu de cena, contando com iniciativas isoladas que não chegaram, no entanto, a denotar efetivo desenvolvimento e amadurecimento artístico/profissional dos violonistas cariocas.

Em 1931, surge a revista “Voz do violão”, que embora deixasse transparecer certa influência de “O violão” no que tange à impressão de músicas e aos artigos dedicados à evolução histórica do instrumento, apresentou-se como uma publicação “menos comprometida” com a meta de nobilitar o instrumento, pois reservou mais espaço e atenção às notícias do ambiente radiofônico e discográfico.

Entre os violonistas que chegaram a alcançar grande desenvoltura no instrumento, alguns tiveram atuação marcante nas gravações e no rádio, como Rogério Guimarães, por exemplo, que foi por muitos anos líder de conjunto e compositor de inúmeras obras para violão solo. No entanto, à exceção de João Pernambuco, que marcou seu nome na história do violão pelas composições e pelo
reconhecido talento de executante, e de Quincas Laranjeira, que nos legou a tradição do ensino do instrumento, acreditamos que o grande conhecedor do violão no Rio de Janeiro no período foi, de fato, Heitor Villa-Lobos.

Embora Raul Villa-Lobos tivesse se esmerado na educação do filho, incentivando-o a dominar inúmeros instrumentos, como violoncelo e clarineta, foi acompanhado de um violão que Heitor se embrenhou nos recantos culturais cariocas, frequentando não apenas as grandes rodas de choro, nas quais conviveu com Quincas Laranjeira, João Pernambuco, Sátiro Bilhar, Pixinguinha, Donga, Catullo e Anacleto de Medeiros, mas também no Buraco-quente, famoso reduto da Mangueira, no qual travou relações com Zé Espinguela e Cartola, entre outros.

José Miguel Wisnik observa: “Villa-Lobos estava devassando uma das fronteiras impostas pelo mapeamento cultural da Primeira República, na qual o violão, o choro e a seresta (sem falar nas batucadas) eram repelidos do estreito conceito de cidadania moral e estética (e reprimidos policialmente, quanto mais populares)”4.

O conhecimento do violão, no entanto, não foi adquirido apenas nas rodas de choro. Villa-Lobos o estudou segundo os modernos ensinamentos dos guitarristas espanhóis, influenciados, sobretudo, por Tárrega e seus discípulos: Miguel Llobet, Domingo Prat, Josefina Robledo e Emílio Pujol. No lendário encontro do compositor com Andrés Segovia, ao tomar-lhe o violão para executar algumas de suas obras, contou: “Eu sentei, toquei e acabei com a festa. Segovia veio depois me perguntar
onde eu tinha aprendido a tocar. E eu lhe disse que não era violonista, mais sabia toda a técnica de Carulli, Sor, Aguado, Carcassi, etc”. O compositor tinha perfeita consciência de seu valor violonístico e gostava de repetir que “No Brasil ninguém tem a minha técnica”. O fato é que Heitor chegou a gravar comercialmente o Prelúdio nº 1 e o Choros nº1.

A despeito da reconhecida habilidade de executante, Villa-Lobos demonstrou todo o conhecimento que possuía nas obras que escreveu para o instrumento. Segundo o violonista Turíbio Santos, “pela primeira vez na história do violão, um compositor de uma esfera superior se debruçava sobre o instrumento a fim de produzir uma vasta obra”5.

O ano de 1899 presenciou as primeiras experiências de composição com as obras Mazurka em ré e Panqueca, ambas para violão e infelizmente extraviadas. Villa-Lobos escreveu para o instrumento até 1950, quando compôs a Cadência, que deu finalmente características de Concerto à Fantasia para Violão e Orquestra. Entre os anos de 1908 e 1912, escreveu a Suíte Popular Brasileira, constituída de cinco peças: Mazurca-choro, Schottisch-choro, Valsa-choro, Gavota-choro e Chorinho, cujos títulos nos remetem à tradição do choro carioca. Em 1920, mais uma homenagem aos amigos de roda, especialmente a Ernesto Nazareth, com a composição do Choros nº1, choro estilizado que, por meio de recursos expressivos, procura evidenciar o caráter de improvisação típico da execução dos chorões.

A obra inaugurou uma série de 17 peças do ciclo denominado Choros, escritos nos anos 20, repertório em que Villa-Lobos, numa explosão de criatividade, juntou as pontas da tradição popular às novas técnicas e estruturas de organização do material musical. Segundo explicação do compositor, os Choros são construídos “segundo uma forma técnica especial, baseada nas manifestações sonoras dos hábitos e costumes dos nativos brasileiros, assim como nas impressões psicológicas que trazem certos tipos populares, extremamente marcantes e originais”6.

O violão, na concepção de Villa-Lobos, extrapolou a tradição musical com a composição dos Estudos, série de 12 peças escritas entre 1924 e 1929 e dedicadas a Andrés Segovia. No prefácio da edição da obra, publicada em 1953 pela companhia francesa Max Eschig, o genial violonista escreve:

“Eis aqui 12 Estudos, escritos com amor pelo violão pelo genial compositor brasileiro Heitor Villa-Lobos. Eles comportam, ao mesmo tempo, fórmulas de surpreendente eficiência para o desenvolvimento da técnica de ambas as mãos e belezas musicais ‘desinteressadas’, sem finalidade pedagógica, valores estéticos permanentes de obras de concerto. (…) Não quis alterar nenhuma das digitações que o próprio Villa-Lobos indicou para a execução de suas obras. Ele conhece perfeitamente o violão e se escolheu tal corda ou tal digitação para ressaltar determinadas frases, devemos estrita obediência ao seu desejo, mesmo ao preço de nos obrigar a maiores esforços de ordem técnica. Não quero concluir esta breve nota sem agradecer publicamente ao
ilustre Maestro a honra que me conferiu dedicando-se estes Estudos.”

Depois dos Estudos, vieram os cinco Prelúdios (1940), dedicados à Mindinha, esposa do compositor. O violão aparece ainda na música de câmara, em obras como o Sexteto Místico, e na Introdução aos Choros, obra composta em 1929 e que teve primeira audição no Rio de Janeiro pela Orquestra da Rádio Nacional, com José Menezes ao violão.

À exceção do Choros nº 1, interpretado em 1929 por Sainz de la Maza, o violão de Villa-Lobos não foi ouvido em seu tempo. Não há notícia da primeira audição da Suíte Popular Brasileira. Da série de Estudos, Andrés Segovia interpretou apenas dois. Os Prelúdios tiveram 1ª audição em 1942 pelo violonista Abel Carlevaro, em Montevidéu.

A trajetória do violão no Rio de Janeiro seguiu marcada por episódios, ressentindo-se de atividade contínua. Em 1942, Andrés Segovia, maior nome do violão no século passado, realizou seu primeiro concerto na cidade. O astro do violão retornou ao Rio alguns anos mais tarde. Em 1952 foi criada a ABV, Associação Brasileira de Violão, órgão incentivador da atividade violonística, patrocinadora da visita de inúmeros concertistas ao país, como Isaias Sávio, Maria Luiza Anido, Oscar Cáceres, Narciso Yepes, entre outros. A associação teve também importante atuação junto a intérpretes que estavam ainda em formação, promovendo a realização de cursos de técnica e interpretação. Destacaram-se os jovens Jodacil Damaceno, Turíbio Santos e Antonio Carlos Barbosa Lima, todos artistas que desenvolveram atividades profissionais de grande relevância para o desenvolvimento do violão brasileiro.

Passados quase cem anos da iniciativa pioneira de Clementino Lisboa, do empenho de Quincas Laranjeira, o violão constituiu repertório e lugar próprios para sua difusão ao chegar, enfim, as salas de concerto.

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1 Carlos Lessa. O Rio de todos os Brasis: uma reflexão em busca da autoestima. Rio de Janeiro:Record, 2000, p. 77
2 Enciclopédia da música brasileira. 2ª ed. São Paulo: Art Editora. Verbete impressão musical no Brasil. 1998. p.370.
3 Op. Cit. pg.163
4 José Miguel Wisnik. Getúlio da Paixão Cearense (Villa-Lobos e o Estado Novo). In: SQUEFF, Enio & WISNIK, José Miguel. Musica: O nacional e o popular na cultura brasileira. São Paulo: Brasiliense, s.d.p.153
5 Turíbio Santos. Heitor Villa-Lobos e o violão. Rio de Janeiro: MEC – Departamento de assuntos culturais, 1975. p.5
6 Adhemar Nóbrega. Os Choros de Villa-Lobos. MEC. Fundação Nacional Pró-Memória. Museu Villa-Lobos. 2ª. ed.p.10